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Autonomia da Consciência e Liberdades Individuais: Análise jurídica da tese sobre “Abuso do Poder Religioso”.

Dr. Edmilson Almeida[1]

Gabriel Doriva[2]

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 82-85.2016.6.09.0139, de relatoria do Ministro Edson Fachin, retomou a discussão acerca da tese recorrente do “abuso do poder religioso”. A matéria, segundo o ministro relator, visa proteger bens jurídicos que a própria Carta Magna reserva a Justiça Eleitoral como a igualdade, a isonomia e a liberdade do voto contra suposto abuso de autoridade praticado por líderes religiosos.

Dentre as razões que fundamentou o voto, o Ministro Relator situa que a “atuação dos coletivos sociais perde legitimidade quando, sob o pretexto de realizar os seus respectivos interesses, termine por coactar a autonomia de seus membros(grifo nosso). Segundo o entendimento, atos políticos praticados por sacerdotes eclesiásticos no âmbito das comunidades religiosas fere direito alheio, gerando pretensa violação a liberdade de consciência de seus membros, obstruindo, por assim dizer, o caráter equânime entre candidatos durante o processo eleitoral.

“Por  essa  razão,  entendo  que  a  intervenção  das  associações  religiosas  nos processos   eleitorais   deve   ser   observada   com   a   devida   atenção,   tendo em consideração  as  igrejas  e  seus  dirigentes  ostentam  um  poder  com  aptidão  para amainar  a  liberdade  para  o  exercício  de  sufrágio  e  debilitar  o  equilíbrio  entre  as chances das forças em disputa.

A discussão de fundo trazida pela matéria suscita uma problemática peculiar a ser analisada: (i) A legislação eleitoral é suficiente para tutelar as situações de abuso de poder? (ii) Em que pese a Justiça Eleitoral seja competente para regulamentar as regras do processo eleitoral, sobre quais fundamentos normativos legais o “abuso de poder religioso” se apoia? (iii) O enquadramento ou “tipificação” da conduta prejudica a liberdade religiosa de manifestação e pensamento?

1. Legislação Eleitoral: Tipificação do Abuso de Poder

A ordem democrática brasileira, como bem ressaltou o Ministro Fachin, acampa legitimamente as disputas pela ocupação dos espaços representativos de poder e influência política, dentre as quais, os ambientes de culto e prática religiosa se perfaz.

De antemão, superamos a definição semântica do termo em espécie “abuso de poder”, pois sabe-se que o regime jurídico do processo eleitoral não é compatível com atos que desnaturam o pleito democrático. Ocorre que a legislação eleitoral, dentro do cenário político, já fixou normativas que tutelam as situações abusivas e ilícitas que prejudicam o rito pacífico do pleito eleitoral e causam, indevidamente, confusão ao livre convencimento do eleitor. A Lei Complementar nº 64/1990 estabelece as transgressões entendidas como abuso de poder, quais sejam, “abuso de poder econômico[3] e “abuso de poder político[4]: “Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

2. Aspectos Legais: Ausência de Normativa

No que interessa acerca da questão suscitada, não há previsão legal expressa nos diplomas ordinários sobre o tema relativo ao “abuso do poder religioso”. Da ausência de “tipificação” denota-se que o enquadramento da situação real fática sujeita a apreciação não poderá ser alvo de interpretação teratológica que se diga respeito ao “abuso de poder religioso”.

Por outro lado, ressalta-se que a legislação eleitoral vigente tutela as hipóteses ilícitas de incidência de financiamento privado de campanha realizado por associação religiosa (art. 24, VIII da Lei nº 9.504/97), bem como da execução de propaganda indevida — proselitismo político — no interior, ou nas redondezas do templo, desde que haja conexão com o ambiente de culto, (art. 37, § 4º da Lei nº 9.504/97).

Em nota pública conjunta sobre a figura do “abuso de poder religioso” a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos – ANAJURE, ao lado da Frente Parlamentar Evangélica – FPE, ressalvaram a necessidade das igrejas examinarem a utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social para que não infrinjam as disposições do art. 22, caput, da LC n. 64/1990. Na nota, também esclareceram:

“Essas são as limitações que a lei impõe expressamente ao contato entre fé e política, não havendo que se falar em abuso de poder religioso, ante a ausência de previsão legal. Contudo, mesmo que não exista o abuso de poder religioso como uma espécie autônoma de ilícito eleitoral, é importante que os candidatos políticos se resguardem de incorrer nas demais hipóteses de abuso contempladas pela lei eleitoral resultantes da utilização indevida da estrutura eclesiástica.”

3. Liberdade Religiosa: Discurso Confessional no Debate Público

Do princípio da laicidade estatal depreende-se, simplificadamente, o imperativo negativo do Estado em não impor ou identificar-se oficialmente com dogmas religiosos. Contudo, não se mede da neutralidade Estatal a eliminação das convicções religiosas como um importante fundamento para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Não obstante, à prática religiosa da manifestação pública da fé deve ser percebida como um elemento intrínseco de consciência pessoal capaz de orientar um indivíduo na compreensão política do seu voto. Conforme preceitua o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular.”

Por fim, notadamente os líderes de confissão religiosa possuem o caráter de influência perante outros, segundo as premissas doutrinárias que orientam a cosmovisão e conduta humana. Contudo, não se vislumbra da análise do texto legal a intenção do legislador, quanto a tipificação do “abuso de poder político”, em equiparar a natureza da autoridade política exercida pelo chefe da Administração Pública, que deve agir segundo o interesse da coletividade, mas desvirtua a estrutura estatal para a realização dos seus interesses privados, com as manifestações públicas de sacerdotes religiosos.

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[1] Advogado. Supervisor Jurídico do “SS Advocacia, Consultoria e Assessoria Jurídica”. Responsável pelo Núcleo Técnico Jurídico (NTJ) das Organizações Religiosas.

[2] Estagiário do SS Advocacia, Consultoria e Assessoria Jurídica. Membro do Núcleo Técnico Jurídico (NTJ) das Organizações Religiosas.

[3] Segundo os ensinamentos de José Jairo Gomes: “a expressão abuso de poder econômico deve ser compreendida como a concretização de ações que denotem mau uso de situações jurídicas ou direitos e, pois, de recursos patrimoniais detidos, controlados ou disponibilizados ao agente. Essas ações não são razoáveis nem normais à vista do contexto em que ocorrem, revelando a existência de exorbitância, desbordamento ou excesso no exercício dos respectivos direitos e no emprego de recursos.” – GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 13ª ed. Ver, atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017.

[4] Gomes também salienta sobre o abuso de poder político: “É intuitivo que a máquina administrativa não possa ser colocada a serviço de candidaturas no processo eleitoral, já que isso desvirtuaria completamente a ação estatal, além de desequilibrar o pleito – ferindo de morte a isonomia que deve permear as campanhas e imperar entre os candidatos – e fustigar o princípio republicano, que repudia tratamento privilegiado a pessoas ou classes sociais.” – GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 13ª ed. Ver, atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2017.